Com poderes delegados pelo Estado, o notário tem a função de imprimir segurança e certeza no comércio jurídico.
Conselho de Ministros aprovou um decreto-lei que estabelece um regime experimental para a realização à distância de atos autênticos, termos de autenticação de documentos particulares e reconhecimentos. Muito se tem falado sobre as “escrituras digitais”. No entanto, para que o próprio notário não fique com “culpas no cartório” face ao deslumbramento por tudo quanto sejam soluções digitais, impõe-se um esclarecimento aos cidadãos e empresas.
O notário é um jurista a cujos documentos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida autenticidade e fé pública. É autor das escrituras públicas e assegura o seu arquivo de acesso público. Rege a sua atividade pelo princípio da legalidade devendo indagar, interpretar e adequar as declarações que recebe ao ordenamento jurídico vigente, esclarecendo as partes do valor e alcance dos atos que praticam. E sim, também usa e apõe carimbos e selo branco!
Nos momentos de maior fragilidade económica e social, os deslumbrados do ‘hightech’ sugerem sempre o apelativo “à distância de um clique” como panaceia para todos os males.
As sociedades hodiernas, democráticas, hipercomplexas e multiculturais dependem do contributo decisivo da tecnologia, permitindo-nos vantagens assinaláveis, nos mais diversos domínios, e um progresso nunca antes visto.
Há, no entanto, atividades que, sem prescindirem do apoio das novas tecnologias, exigem a presença física das pessoas para atingirem o seu fim – sendo difícil, para não dizer impossível, uma transição total e completa dos “bricks” para os “clicks”.
Pense-se nas consultas e intervenções médicas, na recolha de sangue ou na administração de vacinas e outros injetáveis, ou até noutras intervenções mais simples, mas também com impacto na “persona” como, por exemplo, cortar o cabelo.
Propor “escrituras digitais” prescindindo, em regra, da comparência física dos outorgantes perante o notário, é negar a essência da sua atuação, por hipotecar a segurança do ato.
O notário, como autoridade com poderes delegados pelo Estado, tem a função primordial de imprimir segurança e certeza no comércio jurídico. Para tal, entre outros elementos, usa da sua perceção pessoal da vontade que lhe é transmitida pelas partes, que inclui a comunicação não verbal, e da conformação daquela vontade à lei.
Ainda assim, concretizando-se a substituição das escrituras presenciais pelos atos à distância, então é imperioso dotar-se os interlocutores, tituladores e demais intervenientes, com meios técnicos que garantam a maior fidelidade e segurança possíveis. E essa garantia tem de ser assegurada pelo Estado, não só a nível interno, mas também relativamente a meios digitais de identificação estrangeiros, pois é importante não esquecer a dimensão transfronteiriça da atividade notarial.
Em Portugal, o certificado digital qualificado integrado no cartão de cidadão ou a chave móvel digital são garantia suficiente? Quantos portugueses alteraram o código que lhes foi inicialmente fornecido e continua nos servidores do Estado? Podemos ter a certeza de que a pessoa que usa os dados é a mesma a quem dizem respeito? A pessoa a quem dizem respeito os dados nunca “emprestou” o seu cartão e divulgou os seus códigos ao pai, à mãe, ao filho, marido, namorada ou companheiro? A pessoa a quem os dados dizem respeito estará consciente e devidamente informada? Estará a agir livremente? Estará na posse plena de entender e querer? Estará viva?
Ainda que atingíssemos o grau ideal de segurança, a identificação eletrónica não proporciona certeza sobre a capacidade do vendedor / comprador /mutuário / mutuante/fiador / hipotecário / hipotecante / testador / mandante / cabeça de casal / testemunha num testamento ou processo de inventário. E muito menos atesta se a declaração de vontade foi prestada de forma minimamente informada, esclarecida e livre de qualquer condicionamento.
A força probatória, legitimadora e executiva que a lei atribui aos documentos autênticos exarados por notários, as escrituras públicas, bem como as inscrições registrais neles baseadas, exigem uma dimensão mais sólida do que uma mera identificação eletrónica.
Sem prescindir do apoio da tecnologia, o controlo notarial da identidade, capacidade, legitimidade, consentimento livre, informado e esclarecido, com controlo preventivo do branqueamento de capitais, reclama, mais do que nunca, a imediação.
O decisor político, querendo olhar para o mundo notarial, podia preocupar-se em resolver questões bem mais prementes e úteis, como a possibilidade de criação de um arquivo digital ou a emissão e circulação de certidões notariais eletrónicas permanentes, como o mesmo valor das certidões em papel.
Pode o executivo implementar as reformas que, nos termos da lei e por força do mandato democrático que lhe foi conferido, bem entenda.
O que não pode, ou não deve, é vender gato por lebre! “Achtung, baby.”